ABORTO… E QUANDO É COMIGO?

Este é um texto que ninguém quer ler. Mesmo que já lhe tenha acontecido, não vai querer recordar o sofrimento vivido. As pessoas tendem a ignorar as dificuldades em vez de as enfrentarem e tomarem as rédeas da situação.

Não gosto disso. Prefiro lidar “de frente” com a questão e assumir o controlo.

Este é também um texto que ninguém quer escrever.

Por isso mesmo estou aqui sentada na secretária da minha mãe a fazê-lo. Porque é comigo. Porque consigo falar abertamente sobre um tema tão difícil para as mulheres.

O aborto. Tal e qual como ele é. Duro.

É um amor sofrido. Complicado de digerir. De aceitar. De seguir em frente.

No final do ano passado eu e o meu marido tomámos a decisão de voltar a ser pais. Estava na hora. A rotina com a filha Leonor começava, finalmente, a acalmar um pouco. Depois de três anos complicados, com mil ocorrências intensamente vividas, tomámos a fácil decisão – vamos dar uma mano/a à pequena Leonor!

Ela queria muito ter um mano (ou uma mana) – “Não se pode escolher, pois não mamã?

Não filha, não pode. É o que for!”

Não tinha medos. Mesmo depois da nossa história, uma gravidez com grandes percalços, com um diagnóstico de malformação fetal (fenda lábiopalatina bilateral), depois de várias cirurgias e tratamentos e de uma filha intempestiva, nervosa e cheia de carácter, sabíamos que tinha chegado o momento.

Tantas e tantas horas de trabalho e esforço conjunto, potenciaram a compra de uma casa nova, com um bonito e espaçoso jardim para “as crianças” brincarem. Era este o sonho!

E em Março engravidámos. Tanta felicidade que durou pouco tempo… em Abril tive um aborto espontâneo. Nunca me tinha acontecido. Percebi logo o que estaria a passar-se com o meu corpo, com o meu precoce bebé (embrião).

Mas a natureza é assim faz a sua seleção natural e tive que aceitar. E aceitei. E nesses dias, por casualidade, estava um fantástico obstetra na Casa de Saúde da Boavista (hospital onde trabalho) que me viu e, a partir desse dia, escolhi-o para me acompanhar na próxima caminhada.

Alguns exames e análises mais tarde, depois de confirmar que estaria de ótima saúde, voltámos “aos treinos”.

Tenho sempre uma enorme confiança que vou conseguir atingir aquilo a que me proponho. Que as coisas vão correr bem, já chegava de azares e dificuldades. Tinha sido doloroso aceitar o que aconteceu à minha filha, mas rapidamente aceitei. Perdoei Deus, com o qual me tinha zangado e segui em frente. Seguimos.

Sou uma mulher de emoções fortes. Adoro viver, mesmo que isso signifique ter perdas, chorar de vez em quando, sentir uma dor tão forte que parece destruir-me, mas que só me fortalece. Não tenho medo de viver. Claro que tenho medos, mas como o meu pai sempre nos ensinou (a mim e ao meu irmão), temos que controlar o medo, dominá-lo e ele jamais nos dominará.

Tento ensinar algo muito idêntico aos meus pacientes, que vivem atolados em medo, na insegurança do amanhã e com a insatisfação do ontem.

Não sou assim. Não ajo assim.

Intensa. Determinada. Apaixonada. Sei que estas palavras me definem bem.

Aprendo com os erros. Sigo em frente, sem mágoas, aceitando as frustrações que o viver implica. E somo conquistas.

A leitura da minha pessoa é favorável, sei com assertividade que sou bastante humana, tenho compaixão pelos outros, aprendi os valores da honra, justiça e humildade e mesmo quando a vida me prega novas partidas, como agora, racionalizo e foco-me no que ainda quero fazer, nos sonhos e objectivos. Com dedicação, traço o caminho otimista que só os determinados almejam.

Em Outubro voltámos a engravidar. Sabia de antemão que ia conseguir. Sou uma mulher banal de 42 anos cheia de vitalidade, fértil… o meu marido (mais novo que eu), também facilita. E desta forma ficámos ainda mais felizes!

Casa nova, ainda em obras (por isso estou a escrever na secretária da minha mãe, porque estamos temporariamente a viver com os meus pais), uma filha imensamente feliz e tudo se encaixava, de modo fluido, natural, quase sublime.

Vimos o coração do nosso muito amado bebé (embrião) a bater. Como habitualmente, encarei com total positivismo e emoção. Tenho um obstetra maravilhoso (sem qualquer prejuízo para a minha anterior), que me deu toda a confiança e acompanhamento que uma grávida necessita. Responde a cada dúvida, resolve qualquer angústia rapidamente e com evidência na ciência. Adoro-o. Não me entendam mal, não de paixão, mas pela sua dedicação, humanismo e empenho.

Fizemos tudo “direitinho”. E corria bem.

Talvez devido à progesterona, que iniciei prontamente, a barriga começou cedo a ficar inchada e bastante saliente. Quer fosse no hospital, na clínica, com amigos ou conhecidos, era fácil identificar uma gravidez (devido à minha estrutura magra) e nunca neguei. Não tenho nada a esconder. Não sei nem quero mentir. Opto por assumir com orgulho esta gravidez extremamente desejada. Convicta de que vai correr bem.

Leonor, desta vez, soube. Contei-lhe. Agarrou-se a mim e à minha barriga com a sua força máxima, beijou-nos ininterruptamente e verbalizou:

– “Estou tão feliz mamã! Um mano ou uma maninha para mim. Vou ser a mais crescida e vou ensinar tudo a ele! Amo o meu bebé mamã e tenho muito amor e felicidade no coração!”

Tem estado numa felicidade sem fim. Sabia que ela ia perceber no ar, miúda atenta e perspicaz acima do comum para a idade, acredito que tem mais que motivos para tal personalidade e comportamento. Se eu e o meu marido somos confiantes e assertivos, então ainda não conhecem a nossa filha. Enérgica, nervosa também, com um olhar que brilha e desarma o mais inteligente, o mais frio ou afetuoso em três tempos.

E é assim deste modo carinhoso e com muito amor que esta filha abençoada vive diariamente. Feliz!

Só pensa no que vai fazer ao mano/a, no que vai ensinar, brincar, partilhar. Mesmo quando diz que se chorar muito, o mano não brinca no seu quarto, a amo desalmadamente. É o meu orgulho, a minha vaidade.

O maninho deu-lhe um urso novo e fez dele o seu melhor amigo. Leva para a escola e partilha com todos a novidade. Está eufórica a nossa querida filha. O meu amor e sensação de gratificação e felicidade não cabe dentro de mim. Partilho com os que me amam.

Mas há sempre um mas…

Na consulta seguinte percebi que algo de mau se passava e perguntei ao professor:

– “É mau, não é?

– É Andreia, não são boas notícias…” o coração do meu bebé já não batia. Tinha deixado de bater há quatro dias e o mundo voltou a desabar em cima de nós.

Não queria acreditar. Não queria aceitar.

Até o médico ficou perturbado. Li nas entrelinhas.

O marido, como sempre faz, tenta manter o controlo e pôs-me a mão.

Nestes momentos, gosto de sofrer para dentro. Sozinha. Preciso daquela emoção só minha. Tenho que vivê-la. Sei que depois vou ultrapassá-la, mas preciso sentir.

Acho que tendencialmente as pessoas protegem-se demais, não assumem o sofrimento, castram-se e quase que não lhe é permitido lidar com esta ou aquela emoção. Não deixam os filhos cair, magoar-se e de seguida ajudá-los a levantar, como seria de esperar! É mais fácil limitar e não deixar acontecer. Mais tarde terão consequências brutais nas suas estruturas internas. Mas esta sou eu a pensar…

A humanidade tem que sentir! É urgente.

Ali naquele consultório senti incredibilidade. Senti mágoa e tristeza sem fim. Senti injustiça. Senti-me como era esperado e normal.

Senti infelicidade pela minha família, pela minha filha, pelos meus pais. Sofri por mim e por eles. Não queria ter que lhes dar essa notícia.

Não dei logo. Necessitei de duas ou três horas.

Assumi o controlo, não me culpabilizei. Sei que não fiz nada de mal. Tenho a certeza.

Aconteceu. Não sei porquê. Nunca vou saber.

Tenho que lidar com essa informação e aceitar que é assim. Por ora.

Estou a “tentar” abortar, não parece estar a funcionar e imagino que logo ao fim do dia estarei no bloco.

Todos me conhecem no hospital. Já estão preparados para essa possibilidade.

O meu médico tem sido incansável a apoiar. Gosto disso.

Sei que vamos conseguir engravidar de novo.

Vamos fazer um estudo antes, por mais improvável que seja, precisamos de garantias que o meu corpo está saudável.

Tenho a convicção que vamos dar um maninho/a à pequena Leonor.

Este é o meu percurso.

Se tem que ser assim, será. Já aceitei.

Não tenho medo. Estou segura. Quero seguir em frente. Estou a resolver.

A Leonor não sabe e continua a beijar a minha barriga e a falar para o mano. Não dói. Transformei esse sentimento em amor. Quero dar-lhe “alegria e amor no coração” como ela diz. Pelo menos para já. Nesta época festiva. Sábado é a sua festa da escola. Lá estaremos firmes e orgulhosos da nossa princesa maria-rapaz.

Se não demorar a engravidar não precisarei dizer. Logo se vê. Se tiver que lhe contar, também o farei, com verdade, numa dimensão que compreenda. Mesmo que chore e fique triste. Ensinarei sempre a acreditar que tudo é possível!

Sinto tristeza, mas tranquilidade. Sei que logo entrarei naquele bloco com empatia a quem me vai ajudar. Mostrarei força e confiança.

Esta sou eu, agora, em pleno processo de aborto. Sem vergonhas. Sem culpas.

Desta vez vou usar a licença a que tenho direito. 15 anos a trabalhar e nunca usei nenhuma licença ou baixa. Quando a minha adorada filha nasceu, fui trabalhar, paulatinamente, ao fim de seis semanas. Precisava.

Sinto que agora quero parar. Fazer uma pausa. E pela primeira vez usar um direito meu.

A Leonor tem uma ou duas cirurgias para fazer, vou tentar que se conjuguem numa só e passar umas semanas em casa, a acompanhá-la, a respirar fundo, a absorver o amor maior que é ser Mãe. Numa casa nova.

Quando o aborto é comigo, é assim que lido com ele.

E vocês?

Tenham força e esperança. Acreditem. Nunca se sintam culpadas.

É super importante a presença, a palavra meiga, o conforto do marido ou namorado. Nunca as deixem sós. São recordações que jamais se apagarão.

Ninguém fala deste tema, mas quando o assumo perante alguém, essa pessoa relata que também já teve ou conhece um familiar que teve. Mas ninguém fala.

Não é vergonha.

Não é culpa sua.

Simplesmente acontece.

 

Autora

Andreia Montenegro